"Um caminho que se percorre não com pernas, mas com coração. E onde o único desafio que vale, é percorrê-lo por inteiro."


domingo, 30 de outubro de 2011

Delicado

O sonho de Macário sempre foi ter um filho homem. Logo depois
de casar, sua mulher engravidou: uma menina. E assim, a cada nova gravidez, uma
nova menina. Depois de sete meninas, e do conselho de todos para que
desistisse, Macário resolveu fazer uma última tentativa: ou tinha um filho
homem agora, ou não tinha mais filho nenhum. E assim nasceu Euzébio,
Euzebiozinho, como o chamavam. O pai não se aguentou de tanta felicidade e logo
disse “Agora sim posso morrer”. E de fato, quarenta e oito horas depois, teve
um infarto durante o almoço.


Euzebiozinho cresceu amado e paparicado por todos, ou melhor,
por todas, pois cresceu em meio à companhia de suas sete irmãs, de sua mãe, de
suas tias e de suas vizinhas, assim como a costureira e a faxineira da família.
Euzebiozinho tornou-se uma flor de menino. Com quatro anos já tocava piano, aos
seis anos já sabia bordar, aos oito anos já preparava bolos para suas irmãs; e assim
foi crescendo Euzébio, rodeado de companhias femininas.

Chegou aos dezessete anos sem nunca ter dito um palavrão,
nunca ter andado com meninos, nunca ter tragado um cigarro. Era delicado. Um
exemplo de menino bonito e bem comportado. Não se podia desejar maior
doçura de modos, idéias, sentimentos.

Um dia, um tio do rapaz vem visitar e família, e encontra
Euzébio fazendo as unhas com suas irmãs. Impressionado com os modos delicados
do rapaz, pergunta se já tem ou teve uma namorada. Não. O tio então fala à
família o quanto estão “estragando” o rapaz, mostrando ser extremamente
necessário que Euzébio case o mais depressa possível.

Começou então a busca pela namorada ideal. Todas as mulheres
da casa procuraram por toda a cidade uma mocinha que fosse perfeita para Euzébio.
Um dia, apresentaram ao rapaz uma moça chamada Iracema, uma linda menina de
dezessete anos, mas com corpo de mulher casada. A menina era bonita, e um tanto
atrevida.

Assim começou o namoro. Namoravam todas as tardes, com todas
as mulheres da família vigiando. Após uma nova visita do tio, e de uma nova bronca
da parte dele, pararam de vigiar o namoro de Euzébio, e passaram a deixá-lo a
sós com a pequena.

A menina tentava de todas as formas: dava beijos em seu
rosto, mandava-lhe sorrisos, fazia-lhe carinhos e até lhe deu um beijo no
pescoço. Euzébio, tímido, apenas se retraía e se esquivava.

Foi marcado o casório.

Todas as mulheres começaram os
preparativos para o casamento, todas estavam animadas, menos Euzebiozinho. Até
o dia em que a pequena chegou em sua casa com revistas de vestidos de noiva.
Euzébio se encantou. A partir daquele momento, se tornou o responsável pelo
vestido da noiva. Ficava maravilhado em pesquisar modelos, lantejoulas, rendas
e todas as opções de tecidos, buques, grinaldas e véus. Desenhou e junto com a
costureira fizeram o vestido perfeito. “Não existe nada mais lindo no mundo do
que uma noiva”, dizia ele.


Um dia antes do casamento, o vestido sumiu. A família ficou
apavorada. Procuravam o vestido por toda a parte, em toda a casa. Até a polícia
da cidade foi chamada, e nada de vestido de noiva. Cansados de tanto procurar,
decidiram descansar, e decidir o que fazer no dia seguinte.


Euzébio, que roubara o vestido de noiva teve a madrugada
inteira para ele, sem pressa. Tomou um longo banho, com sabonete espumoso,
perfumou-se com água de colônia diante do espelho. Da água de colônia, passou
ao pó de arroz, ao rouge e ao batom.


Finalmente vestiu o vestido de noiva, com a grinalda e o véu. Apanhou o disco da marcha nupcial e o colocou
na vitrola, no volume máximo.

Pouco depois a família acorda e vai até seu quarto, ver o que
está acontecendo.


Vestido de noiva, com véu e grinalda, enforcara-se


Euzebiozinho, deixando o seguinte bilhete: “Quero ser enterrado assim.”.





--baseado no conto Delicado, de Nelson Rodrigues--

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