Na cama ao meu lado, a senhora está deitada, debilitada, respirando com ajuda de um aparelho de oxigênio.
Estou sentada num sofazinho.
Verde.
Verde bem claro.
Minha bolsa do lado. Aberta. Saindo dela "A menina que roubava livros".
O marcador na página 19.
Esse livro começa com um prólogo da Morte.
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Olho para o rosto da senhora.
Bem pálida.
Ela está dormindo. Respira com dificuldade mas quase não se mexe.
Ela está tomando uma medicação injetável.
O soro cai numa velocidade média.
Gota por gota.
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A televisão está desligada. Olho e vejo o reflexo da senhora, meio escuro.
Parece mais triste o reflexo do que a visão.
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Presto atenção nas marcas na pele dela.
Marcas de idade.
A pela enrrugada, as manchas.
Cabelos muito brancos, já compridos de tanto tempo internada.
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Pego a mão dela. Noto a semelhança da mão dela com a minha.
Meu sangue.
Se não fosse aquela senhora eu não estaria viva.
E quando eu for a senhora na cama?
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Senti pena.
Senti dó.
Senti dor.
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Desejei nunca ter que passar por isso.
Por enfermeiros trocando fraldas, por dependência da família, por falta de saúde, por comida na boca e dentaduras sujas.
Passar, talvez últimos dias num quarto verde claro.
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Minúsculo.
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Naquele momento senti medo.
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Lágrimas escaparam e eu logo as sequei.
Vi que existe um limite onde podemos ou não controlar nossas vidas.
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Mais tarde chegaram visitas.
Eu não prestei atenção na conversa.
Pensava em outras coisas.
Mas prestei atenção numa coisa.
No momento da despedida.
Na oração feita fervorosamente, para aquele que segundo a crença em questão tinha o poder de mudar aquela vida.
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Não temos o controle total de nossas vidas, sabendo disso as pessoas buscam aquele que tenha, porque acreditar que o controle disso não pertence a ninguém é muito doloroso.
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Não temo por heresias.
Não temo por pecados.
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Algumas horas depois eu me encontro na saída do hospital, sentada num degrau de pedra fria e dura.
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No meu lado encontra-se um anão.
Um anão vendendo biscoitos.
Biscoitos por R$ 2,40.
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Eu já havia conversado com ele.
Uma boa pessoa, que assim como a senhora, de formas diferentes, perdeu o controle de sua vida. .
Há também, na minha frente um homem de meia idade, que está limpando o chão de sua lanchonete.
Ele está somente com uma bermuda.
Está uma noite fria.
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São 21:30h.
A bermuda era vermelha.
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Não acredito que aquele tenha sido o sonho de sua vida, mas ele estava lá de qualquer forma.
O anão foi até ele, e ambos ficaram conversando por um momento.
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Eu tenho muito respeito por todas as pessoas.
Faz parte da minha ideologia.
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Faz parte de ser quem eu sou.
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Todas elas pra mim valem muito.
Todos os tipos, todas as esquisitices humanas.
Todos os defeitos. Todo o submundo.
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Não sei se terei respeito por mim se tudo der errado e eu perder o controle de tudo.
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Tenho medo do tempo. Ele me apavora.
Tenho medo do meu corpo não me aguentar.
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Quero guardar o mundo em mim, e me sinto tão cheia de todos os tipos de coisas que não sei se terei todo esse espaço.
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Me sinto sempre a ponto de uma explosão.
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Agora eu entro novamente no quarto de hospital verde claro chato.
Me aproximo para dar um beijo de tchau na senhora.
Suas mãos me procuram desajeitadamente.
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Na sede.
No anseio.
Na ânsia.
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Ela não tem vontade de me ver ir embora.
Realmente, fica um nó ao cruzar a porta.
Senhoras.
Tempos.
Mortes.
Anões.
Idéias.
Orações.
Biscoitos.
Livros.
Lanchonetes.
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Noites frias.
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Tudo dentro de mim.
Explodindo.
Hoje.
4 comentários:
Sem dúvida o melhor post que li seu até agora. Embora releve muitas questões pessoais que esteja passando- o que eu acho ótimo, é bom expor em palavras o que sentimos, pq. elas tem muito poder- , o texto nos faz refletir também que o medo é algo que vive com a gente em todas as fases da nossa vida, a tendencia é sempre que a gente tenha mais medo das coisas,, do envelhecer inclusive, pq. a sociedade não prega o ato como algo bom, o que nos assusta mais ainda, mas o lance é pensar em como enfrentar isso, pq. infelizmente e inevitável...
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Nossa vida quase incontrolável diante do tempo e um quarto verde. Paisagem dos acontecimentos. Lindo texto, Lívia. Os olhos da percepção bem abertos, atentos a cad detalhe, cada história, cada pessoa. Foste grande!
Sei que é um post antigo, mas não poderia deixar de comentar por dois motivos...
O primeiro é que me chamou a atenção a história em si... não sei se é real, mas eu afirmaria que sim, além de concordar que nossos passos mudam as vidas, mas nem temos controle sobre onde elas serão afetadas. Já ouvi certa vez alguém falando que a vida é uma apresentação de Teatro, sem direito a ensaios... E Concordo!
Cada um deve viver seus medos e prazeres, antes que a cortina feche.
O segundo ponto, é o livro! "A Menina Que Roubava Livros" de Markus Zusak... Tenho este livro, o li em dois dias tamanho foi o prazer. A estória fascinante, a ambientação perfeita e a narração espetacular... Para mim, o melhor dos melhores que já li!
Faz parte da minha humilde biblioteca de 73 livros (crescendo aos poucos) e está no meu Hall da Fama, sempre tenho vontade de reler, mas tenho sempre mais um novo livro para preencher o meu ócio!
http://www.nomeucanto.rg3.net
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